
Introdução.
A forma como compreendemos o Transtorno no Espectro Autista (TEA) é diretamente influenciada pela maneira como a linguagem estrutura essa experiência. A classificação do autismo em “níveis” (leve, moderado e severo) reflete um modelo de pensamento que não se aplica a outras condições médicas complexas.
Por exemplo, não falamos em “níveis de câncer”, mas em tipos e estágios. Isso ocorre porque o câncer é compreendido a partir de sua estrutura biológica, enquanto o autismo tem sido organizado epistemologicamente por uma lógica externa, observacional e funcionalista, pautada na adaptação à norma neurotípica.
No entanto, há um problema ainda mais profundo nessa categorização: a “entificação maléfica” do espectro. Ao longo da história, o TEA tem sido tratado como uma entidade estranha e hostil que “se alojou” na biologia e no ambiente, privando a pessoa de uma existência plena. Isso faz com que a pessoa “do” espectro seja vista como portadora de algo que precisa ser amenizado ou ajustado. Em contraste, a pessoa “no” espectro (termo proposto na perspectiva disruptiva da Autéia) é um Ser-no-Mundo, um sujeito cuja existência não pode ser reduzida a uma condição a ser gerida por terceiros.
Este artigo analisa como a linguagem e a epistemologia do TEA foram moldadas por essas concepções e quais os impactos disso na experiência autística.
1. A Linguagem Como Fundamento da Epistemologia do TEA.
Se partirmos da filosofia da linguagem, percebemos que a própria noção de “níveis de autismo” é resultado de um jogo de linguagem que organiza a experiência autística com base em observações externas e funcionais.
Agora, comparemos com o câncer. Em oncologia, não há “níveis” da doença, mas tipos (melanoma, leucemia, carcinoma, etc.) e estadiamento (progressão da doença). Essa abordagem se baseia em um marco biológico objetivo, determinado por marcadores genéticos e celulares.
Já a classificação do TEA em níveis não possui um equivalente biomédico. Em vez disso, foi construída sobre um critério pragmático e externo, que prioriza a observação de comportamentos e sua adaptação à norma social.
Isso gera uma entificação maléfica do autismo. O espectro é tratado como algo que “se alojou” entre o esperma e o óvulo ou que “se apoderou” das dinâmicas ambientais, configurando-se como uma força misteriosa que rouba da pessoa sua humanidade plena. Essa visão, historicamente reforçada, tem consequências diretas na forma como as pessoas autistas são percebidas e como elas próprias passam a se descrever.
Podemos formular, então, um ponto de partida disruptivo:
Se a epistemologia do TEA fosse construída de dentro para fora, ou seja, a partir da experiência autística, e não da observação neurotípica, a categorização em níveis sequer existiria.
2. O Perigo da Legitimação Diagnóstica Como Identidade.
A classificação do TEA em níveis não apenas estrutura a percepção externa sobre o espectro, mas também influencia diretamente a forma como indivíduos autistas se apresentam dentro da sociedade.
Um fenômeno preocupante tem sido a necessidade de validar a identidade autística através dos manuais diagnósticos, o que chamamos de pragmática da legitimação diagnóstica.
Um exemplo comum desse comportamento pode ser visto na seguinte autodescrição:
“Meu nome é Maria, sou autista nível 1, sem comprometimento da fala, da cognição ou das funções motoras.”
Esse tipo de apresentação, à primeira vista, pode parecer apenas um ato de identificação. No entanto, ela esconde riscos profundos, como:
2.1. Preconceito Velado.
Ao enfatizar que não possui certos “comprometimentos”, a pessoa estabelece uma hierarquia dentro do espectro, reforçando a ideia de que algumas experiências autísticas são mais válidas do que outras. Isso cria um modelo excludente, onde aqueles que possuem maiores desafios são vistos como menos representativos ou menos autênticos na experiência do TEA.
2.2. Glamorização e Distanciamento da Complexidade do TEA.
A tentativa de alinhar gostos e preferências aos critérios diagnósticos pode levar à glamorização do autismo. Se apenas determinadas manifestações do TEA são consideradas legítimas ou socialmente aceitas, criamos um padrão de autismo que não representa toda a diversidade do espectro.
2.3. Risco de Normatividade Invertida.
Se antes o diagnóstico era um instrumento clínico para identificar necessidades e oferecer suporte, ele passa a ser um selo de pertencimento que exige que a pessoa “performar” o autismo dentro de um modelo específico. Assim, em vez de libertar, essa categorização pode acabar se tornando uma nova forma de normatividade, onde só é aceito quem se encaixa na descrição dos manuais.
3. O Que Está em Jogo na Epistemologia do TEA?
Se voltarmos à questão central da epistemologia do TEA, percebemos que a linguagem diagnóstica foi construída para categorizar comportamentos observáveis, e não para descrever a experiência interna do indivíduo autista.
Quando uma pessoa afirma ser “autista nível 1, sem comprometimentos”, ela não está apenas descrevendo sua vivência, mas reproduzindo uma estrutura classificatória que foi criada para atender a demandas externas, como intervenções médicas, educacionais e sociais.
Além disso, essa forma de descrição reforça a “entificação maléfica” do espectro. No fundo, essa visão ainda carrega a ideia de que há algo de errado com a pessoa autista, algo que precisa ser categorizado e controlado.
Isso nos leva a um ponto crucial:
O autismo não deveria ser definido pelo quanto um indivíduo se aproxima ou se afasta da norma neurotípica. Se quisermos construir uma epistemologia verdadeiramente disruptiva, precisamos romper com essa lógica e permitir que a experiência autística seja descrita a partir de sua própria fenomenologia.
Conclusão.
A classificação do TEA em níveis não se baseia em um critério biomédico sólido, mas em um modelo funcionalista externo que prioriza a adaptação à norma social. Esse modelo cria distorções na forma como o autismo é compreendido e vivenciado, levando a fenômenos como a legitimação diagnóstica como identidade, o preconceito velado e a glamorização do espectro.
Além disso, há um problema epistemológico mais profundo: a “entificação maléfica” do espectro, que historicamente tratou o autismo como algo que sequestra a humanidade da pessoa autista. Isso contribui para um modelo de exclusão, onde a pessoa “do” espectro é reduzida a uma entidade anômala, em vez de ser reconhecida como um Ser-no-Mundo.
Se quisermos pensar em uma epistemologia do TEA que seja verdadeiramente autêntica e libertadora, precisamos reconstruir a compreensão do autismo de dentro para fora – a partir da experiência autística e não da validação externa.
O desafio está posto. Agora, precisamos seguir construindo essa nova linguagem.